quarta-feira, 20 de maio de 2009

A saga do Gato Mutante




Na sequência de coisas que só acontecem comigo, as trapalhadas profissionais ocupam uma boa parte do histórico.

Sempre que me reuno com os amigos, e com os amigos dos amigos, tem alguém que pede pra eu contar "aquela" historinha , e como cada um tem a sua preferida, pode ser a da Tartaruga, Hamster, Papagaio... Parece até piada, mas, nada mais é do que a minha tentativa franciscana de ajudar o animalzinho alheio.

Qualquer dia desses eu conto as outras por aqui também. Mas, hoje, decidi contar uma novinha, que ninguém conhece, porque aconteceu ontem , num dia bem calmo de plantão.( Sempre que estou diante de um dia calmo, no plantão, me lembro de uma entrevista que assisti, de um bombeiro novaiorquino que participou dos resgates de 11 de setembro. Ele disse que aquele dia, até acontecer a tragédia, havia sido o dia mais calmo de trabalho. Nem gato subia em árvore... Ai, ai...)

Um dia tranquilo, zen-budista. Passei o plantão inteiro ouvindo musiquinha, lendo blogs, falando com velhos amigos ao celular, assistindo vídeos engraçados. Eu diria um " Day spa", se o local não fosse uma clínica veterinária.

Pois bem, dentre os animais internados , temos um gatinho. Reformulando: Temos uma praga, um tigre-dente -de -sabre, um remanescente do rabudo-chifrudo. O bicho é uma peste. Sua dona, uma senhora muito querida e estimada por todos na clínica atende pelo nome de D. Luzia.

Ela é daquelas velhinhas fofas, que adotam bichinhos de rua para cuidar, que ligam no dia do Médico Veterinário para nos parabenizar, que mandam pastel fresquinho nas tardes de sábado. Enfim, uma das Top 10 da Clínica.

E, na semana passada, D. Luzia me ligou chorando, o que me causou um tremendo mal-estar
( Piscianos têm problemas para lidar com sofrimento alheio), afinal, eu também adoro a D. Luzia e naquele momento faria qualquer coisa para ajudá-la . Lógico que ignorei meu sexto sentido que dizia, ou melhor, gritava para que eu não fizesse isso, até por que , sortuda como sou, a July ( que é a poodle fofa-branca-floquinho-saltitante da D. Luzia) só faz a vacinação, ou seja, é uma adorável cadelinha, e jamais me traria problemas, mas, em compensação, Selton Mello ( O gato) é o terror dos plantonistas desta humilde e querida clínica.

O diálogo se deu da seguinte forma:


( Trimmmm-trimmmm)


- Clinica Veterinária Bom dia!


- Doutora??


- Sim, pois não.


- Doutoraaaa ( buáaaa- snifff-snifff), é a Luzia que tá falando.


Esse é o exato momento que meu sexto sentido grita !!!!


- Oiii D. Luzia, o que houve?? Por quê a senhora está chorando?? Não chora não. ( Sensibilidade aflorada. Praticamente chorando. Preparo ímpar para lhe dar com sofrimento alheio. Uma maravilha)


- Doutora, só a senhora pode me ajudar.


Momento sexto-sentido berrando. Piscando em neon a palavra NÃO. Momento ego acreditando que só eu realmente poderia ajudá-la.


- Claro, D. Luzia, fique tranquila. Eu vou ajudá-la. O que houve? A July tá dodói?? ( Hehehe, eu ainda tinha uma pontinha de esperança)


- Não , Doutora. A july está ótima. É o Seltinho. Ele aprontou mais uma vez. Fugiu, brigou e está com "aquela maldita doença outra vez". Ficou 3 semanas desaparecido. Achei que até tivesse morrido (?), mas, voltou hoje e está em petição de miséria.


Humpf! Eu já sabia. Mas, não queria acreditar. Esse gato meliante roubou umas 5 vidas dos gatos da vizinhança, só pode ser. Só comigo ele já perdeu umas 9. Essa matemática não está certa.


Trabalho com donos de cães e gatos há uns bons 7 anos, desde que me formei, portanto, desenvolvi algumas técnicas de traduzir exatamente aquilo que eles querem dizer a partir da experiência, e uma das coisas que aprendi é que, em 90% dos casos , petição de miséria significa um pequenino machucado que nem sangra.

E os outros 10%, você pode me perguntar, querido leitor.

Bem, se dividem em : 8% eu não sei o que fazer e 2% é muito, mas, muito pior do que eu estou dizendo, na verdade acho que nem tem jeito, e espero que a Dra indique logo a Eutanásia porque não quero que meu bicho sofra.

Muito bem, sou uma menina otimista, animadinha, com tendências claras a achar que o mundo exagera no sofrimento, e que as coisas não são tão ruins assim. Classifiquei Selton Mello nos 90%. Ledo e doce engano.


- D. Luzia, fique tranquila. Peça para alguém trazer o bichano aqui. Eu resolvo isso. ( Rá- mania de Médico é achar que fez curso pra Deus. Sindrome de Mulher -Maravilha)


- Ah, Doutora. Só mesmo a senhora. Um doce de menina. Que Deus lhe proteja, São Francisco lhe ilumine e Sto Antônio lhe dê um bom marido. (??)


- Obrigada, D. Luzia. Pra senhora também. (hehehe).
Quis acrescentar a frase dos santos a piadinha: E que São Pedro perca sua ficha, mas, achei que a situação não cabia uma piadinha infame. Me calei.


Eu já sabia que Selton Mello aportaria por essas bandas. Só não fazia idéia do que ele aprontaria dessa vez. Bobinha.


Podemos notar o real desespero do Ser Humano, quando menos de 5 min depois, aparece um taxi na porta da clínica, cantando todos os pneus do mundo e eu assustada achando que fosse uma emergência tóxica ( por essas bandas, os animais habitualmente comem veneno para rato).

Era Selton Mello. Trazido pela secretária do lar de D. Luzia, dentro de uma caixinha. O mal cheiro era perceptível há uns bons 20 metros. Não vou entrar em detalhes, por que sei que nem todo mundo que frenquenta o blog tem estômago pra isso, mas, na minha classificação, petição de miséria era elogio pro bichano. Naquele momento eu percebi que todas as orações que D. Luzia fazia para São Francisco eram ouvidas. Ela tem uma boa network com a galera lá de cima.


Nesse dia, quase interditei a clínica. Usei todo meu sangue frio e minha querida alergia respiratória para ajudar o filhote do chifrudo. Fui com tudo, e juro que pensava somente que, não ajudá-lo seria trair meu juramento de Médica Veterinária, o que eu jamais faria, mas, que deu vontade deu.


Então, queridos leitores, essa foi a saga inicial. Passaram-se duas semanas, voltemos ao Day Spa, tudo lindo. A clínica fecha as 18:00. Eu estava me despedindo dos amigos no MSN. Precisamente as 17: 50, escuto milhares latidos, gritaria, coisas caindo. Veio a minha mente a cena de Wolverine, quando tudo começa a desabar. Paulo, meu fiel ajudante chega a porta do consultório pálido. Lábios cianóticos. Mal consegue abrir a boca.


Eu, já quase entrando em coma por curiosidade e pavor, olho pra ele e grito:


- Paulo, o que houve?? Desembucha logo!


- Dra, você não sabe o que aconteceu e o que ia acontecer.


(?????????????????????????????)


- Paulo, ( eu disse já levantando da cadeira e passando a mão repetidas vezes no rosto), sem mistério, fala logo.


- Foi o gato da D. Luzia.


Não sei como consegui me manter de pé. Sinceramente, esse é um daqueles momentos que se você desmaia, tá no script. O gato da D. Luzia NÃO!! Além dela ser uma querida, é a principal cliente do mês. Sua conta será responsável por grande parte dos pagamentos que efetuaremos nos próximos dias. Pronto, falei. Veterinária também paga conta.


- Morreu?? ( Diz que nãooooooo)


- Não.


Ufa!!!!!


- Ele fugiu, Dra.


Aqui, é o ponto onde a crise convulsiva seria normal. Até uma parada cardio-respiratória seria aceitável.


- Fugiu?? Paulo, fugir é pior que morrer.


-Ele é louco, Dra. ( como se eu não soubesse), voou em cima de mim quando abri o Gatil para colocar a comida. E pulou pra cima do muro, depois pros canis de trás ( que fazem ligação com a rua). Eu acho que esse gato tem asas escondidas.


Eu de verdade estava a beira de um colapso. Não sabia o que fazer. E Paulo fazendo piadinha. Nem respondi. Apenas suspirei. Aqui, meu cerébro em recuperação , tentava criar uma boa desculpa para dar a D. Luzia.


-Mas, fique tranquila,disse Paulo. Resolvi parte do problema. Prendi ele no transporte, mas, preciso da sua ajuda para tirar o tranporte de lá.


Por quê , Meu Deus... Porque as pessoas gostam de fazer testes cardio-respiratórios comigo? Por quê gostam de me ver mais pálida do que já sou? Por quê me levam ao extremo de adrenalina em segundos????


Selton Mello tem uma doença de pele grave, causada por um fungo de nome feio, que lastimavelmente é muito comum por aqui. O pior disso é que essa doença é uma zoonose, transmitida pela arranhadura do gato. Ou seja, se ele é o Selton Mello a chance de você se contaminar e passar longos 8 meses ingerindo uma medicação hepatotóxica que o impedirá de tomar sua cervejinha no final de semana é grande. Ainda bem que o Paulo é evangélico e não bebe.


Depois do alívio, fui até a área de internação com o Paulo pra ver o que estava realmente acontecendo. Não sei se foi fruto de minha fértil imaginação, ou da ausência de oxigênio que ocorreu em meu cerébro por alguns segundos após a noticia, mas, ouvi a musiquinha que tocava no programa dos Trapalhões ao fundo. Tã nã nã nã nã nã nãããã.....


O caos estava instalado: Vassouras, potes, ração, os 2 cães de guarda da clínica latindo. Seria cômico se o episódio não se tratasse de Selton.


Paulo havia prendido nosso algoz no tranporte que o mesmo foi trazido. Uma caixinha de fibra, com grades e várias janelinhas laterais. Perfeito para passar a patinha de Selton e suas unhas. Uma beleza. A caixa estava com a porta virada para a parede do canil e precisávamos tira-la dali em tempo recorde, pois os cães latiam demais o que deixava o bichano, digamos, um pouco mais alterado.


Enquanto Paulo segurava a caixa, eu imaginava uma forma de trazê-la para fora sem que isso causasse dano no felino e no meu ajudante. Pedi para que ele arrastasse a mesma ainda pela parede, até próximo a saída do canil. Feito isso, me lembro perfeitamente que histérica gritava para que ele não largasse a caixa. Estávamos bem próximos da Glória., dos fogos de Artifício, do estouro da Champagne, não poderíamos esmorecer. Palavras consoladoras e de grande serventia eram por mim proferidas.


- Paulooooo, se você soltar essa Merrrda de caixa eu te mato. Não largaaaaaa. Cuidadoooo. Se ele te arranhar você sabe que tá f.... Inss , Paulo!!!! INSS!!!!


Corri para pegar uma corrente. Era a melhor forma de tirar a caixa dali sem correr o risco de abrir a portinha que não estava fechada, apenas encostada.


Entreguei a corrente pro Paulo, que envolveu a caixa e gloriosamente levou-a para o gatil de onde nunca deveria ter saído.


Praticamente uma final de campeonato em cima do Vasco , com gol de Pet de falta.


Estávamos ali, tensos, apavorados. Mas, resolvemos a situação.


Paulo me saiu com a pérola final:


- Dra, eu tenho certeza que você fez curso de McGuyver. Nunca ví ter idéias tão brilhantes em momentos de crise.


Respondi, ainda sob efeito da pressão psicológica:


- A necessidade faz o homem, Paulo. E o desespero, a mulher. Ainda bem que D. Luzia é devota de São Francisco. Sem ele seria impossível raciocinar.



E tem gente que diz que ser Médica Veterinária é mole.

E tem gente que diz que emocionante é saltar de pára-quedas.


Doce Ilusão, Brother.


P.s: Preciso perguntar a D. Luzia se o nome Selton Mello foi inspirado no Filme " Meu nome não é Jonny". Tenho sérias suspeitas.

3 comentários:

  1. Adorei a história!!! E continuo fã de gatos, mas esse Selton... tô fora, heim?
    Bju

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  2. hahaha
    Adorei amiga...conta mais!

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  3. E dizem que vida de Veterinária é molezinha..
    Hehehe

    Ah, e tb continuo fã de gatos....

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